terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Literatura de Processo #2 (Dona Derrisão)

Debaixo da luz, durante a velhice, alguém terá que cuidar do meu corpo, me dá de beber, puxar uma prosa sem assunto, enquanto as minhas lembranças correm, uma a uma, sem razão; em meu leito farão carícias para massagear minha alma, pois, minha imagem que outrora era refletida no espelho tornou-se um estranho que adentra a porta do meu céu e apaga a luz. 

Literatura de Processo #1 (Dona Derrisão)


Podemos acordar todos os dias sem saber o que este dia irá nos trazer de feliz; assim como Maiakóviski gravou na historia que cada um, ao nascer, traz consigo sua dose de amor e, sobre o coração, levantamos o corpo, podemos compreender que este dia ao amanhecer será guardado em nossa memoria; lembranças apaixonantes, tristes é tudo que completa a vida, pois é isto que compõe o humano em seus dias de velhice, entretanto, a mente, para alguns, já não serve como uma caixa retrospectiva da vida, ela apenas desfolha, e desfolha ao poucos sem dó, tornando-se apenas a alma que evade do corpo até que esta memória se torne vazia para habitação de demônios, e este demônio maior é o ALZHEIMER.

Luís Ferreira

UM CERTO PESSOA QUE BANALIZOU O SENTIMENTO


Se Fernando lesse Constantin
Caderno de Direção #9

                No jogo teatral fingir é o pior caminho. Significa falsidade. Fingir, na verdade, pretende apenas formular uma imagem falsa daquilo que realmente sentimos. A mulher que finge o orgasmo pode levar o homem à lua, mas o seu jogo não transcende os panos da cama, menos ainda, as cortinas do corpo.
                Quando Pessoa diz que o poeta é um fingidor e que finge tão completamente ao ponto de fingir a dor que sente de verdade, não consigo imaginar outra coisa do que um ator canastrão no meio do palco... Já ouvi estes versos sendo declamados tantas vezes, mas nunca senti neles algo que me motive. Essa primeira estrofe me remete à imagem do poeta e, depois disso, nada mais. O que vem em seguida é escuro, é impalpável, é confuso... Não me parece verdadeiro ao ponto de me tocar profundamente. O que Stanislavsky condena, justamente,  são o que ele chama de “carimbos”. O sentimento interpretado pelo sentimento, sem considerar as circunstâncias, os objetivos, as ações físicas. Tudo isso não produz a sensação de verdade no palco e desemboca no que conhecemos como clichê, ou seja, a banalização dos gestos, da fala, das marcações...
                Fernando conseguiu produzir o carimbo do poeta: aquele que sofre, às vezes à toa, às vezes à força, e que coloca no papel aquilo que sente, de forma “pessoal”, sem querer alcançar um objetivo específico, sem querer dizer algo com aquela dor.
Se sofrer bastasse ao ofício da poesia, comparemos, então, o poeta à perua do high society:
 Ela gasta meramente por gastar e somente o gesto, sem qualquer motivação, basta. Ambos não têm um objetivo definido naquilo que produzem. Enquanto o sofredor não tem nada para dizer e fala da dor pela dor, o consumo personificado não tem nada para fazer e faz compras.    
Os dois são uma imagem cristalizada, um kitsch, um clichê.
Não julguemos o poeta de Pessoa, que foi muito profundo e muito bom. Rejeitemos a pessoa do poeta que se isola na poesia e da poesia não vai a lugar algum. Pensemos na utilidade daquilo que fazemos para nosso ofício não ser inútil ou, sendo malicioso, autopsicográfico...
Voltemos a Stanislavski que defende o uso de vários artifícios para alcançar e satisfazer o senso de verdade (que é confundido erroneamente com realismo). Neste caso, a técnica artificial serve para dar mais vida ao ator e à mensagem que ele aporta, enquanto que, no mundo real, as ações e as coisas atuam para dar mais artifícios à vida, deixando-a vazia e sem sentido. Eis a grande luta de resistência obrada pela arte: reverter esse fluxo da verdade através da ficção, convertendo um paradoxo através de outro paradoxo.
 No entanto, se o verso ou a atuação não servem para reforçar a mensagem que queremos passar, eles se transformam em um feixe de luz dentro de uma sala escura, que se destaca da escuridão com seu brilho e sua beleza, mas não consegue iluminar nada que está ao seu redor, nem o simples criado mudo, quem dirá as brechas escondidas atrás do guarda-roupa.

O SALDO DO DEDO QUE CIRCULA



 Caderno de Direção #8


Estamos perto do fim do ano e fechamos esta temporada de Um dedo por um Dente com 14 apresentações por nossa conta, 2 pagas pelo Sesc e um total de R$ 89 resultante das passagens de chapéu no final do espetáculo... Operando a mesa de luz tirei algumas conclusões. Aí seguem:

Conclusão nº 1

São muitas as pessoas que fazem teatro no Maranhão, mas são poucas as que o discutem.  O que ainda me choca são alguns grupos que viajam, tem a chance de fazê-lo, mas voltam sem dizer nada, sem publicar os resultados, compartilhar o processo, as dificuldades. Nesse ponto admiro a Pequena Cia de Teatro. Eles viajam pelo Brasil, publicam como foi o espetáculo, a recepção, o que se pode fazer para melhorar, como eles chegaram a tal produto etc. Se vão para um estado não dizem “olha a Pequena no Pará!” ou “Tal lugar é maravilhoso”. O que adianta saber de tal companhia foi para tal região se eu não posso ir lá assisti-la? O que vale é o relato daquela experiência compartilhado, dialogado e trabalhado. O facebook e os blogs são ferramentas fundamentais para isso, embora, em tais redes, me pareça que um “curtir” valha mais do que mil palavras. Mas postemos! Um dia se cansam e lêem, um dia lêem e comentam!  

Conclusão nº 2

São Luís tem dois tipos de público que, no final das contas, dão no mesmo. O dito “povão” que não perde tempo com teatro, pois o pagode está fervendo e cerveja congelando. E o outro: os ditos “intelectuais”. São cultos, é claro. Falam bem do que bom e mal do que é ruim. Isolam-se em suas rodas de conversa na paisagem de um bar, fazem textos para eles mesmos, publicam livros para os seus e cultivam o que chamo de “público familiar”, ali poucos entram, dali, dificilmente algo sai. Para mim, ser intelectual é uma ofensa. Na era em que precisamos de homens de ação, o intelectual é a figura mais inútil no meio desta briga.  Sou pensador. Meu trabalho é pensar para achar soluções e não procurar soluções para pensar.  O que precisamos é de inteligência, não de intelectualismo.

Conclusão nº 3
A amizade é como ferro. Se nada acontece entre as pessoas, se elas não passam poucas e boas juntos, esta matéria não sofre reações e não se solda. Eis a diferença entre amizade e a convivência. A última enferruja, a primeira se funde, se interliga, justamente para evitar este salitro que é a superficialidade das relações. Com Nuno e Luís passei maus e bons bocados. Fomos da frustração à glória. Provamos da decepção e da apoteose. Apreendemos juntos. Progredimos. Investimos...

Um dedo por um dente foi uma escola. Personagens que não existem no mundo real. Cenário com luz de jardim que leva 5 horas para montar e que levou três meses para ser feito. Pagamos para fazer teatro, isto é um fato. Mas neste ponto acho importante fazer uma ressalva:

O cara quer fazer um curso (superior ou técnico) ele o paga, mesmo se não pagar, deve freqüentar todas as aulas para obter o certificado. Por que o teatro não obedeceria à mesma lógica? É preciso melhorar o trabalho, apreender com os erros, fortificar o jogo, ser criativo, escrever, reescrever, botar em cena, tirar de cena, concertar, fazer uma extensão, gastar tempo, trabalhar como uma besta e estudar como um típico concurseiro... Em minha opinião tudo deveria ser tratado da mesma maneira: o estudante de engenharia que negligencia os estudos e não se aplica pode derrubar um prédio por um simples erro. A companhia que não trabalha com afinco e aprimora o seu trabalho (independente dos recursos) pode chafurdar a magia do palco e destruir a possibilidade de construir um sonho.

Conclusão nº 4

Se todo este trabalho nos custou caro é por que, com certeza, não sairá barato.



Foto: Um dedo por um dente - Última apresentação de 2012
19h amanha (quarta-feira)!!
Hall do CCh/UFMA

Fotografia: Taciano Brito

Conclusão nº 5

Em função dos inúmeros testes que fizemos, de abrir a peça para o improviso, pervertendo o seu significando, fechando a peça novamente, abrindo-a para a intensificação de ritmo e energia de cena, de nos apresentar para diferentes públicos (crianças - diabólicas por serem anjos; anjos por serem diabólicas - moradores de periferia, estudantes da universidade, intelectuais, pensadores, um fotógrafo) tivemos a chance de aplicar vários métodos e ver o que funciona e não funciona.

Conclusão nº 6

Os sentimentos mudam a decorrer de cada experiência. Antes de apresentar ficava tenso e ansioso, agora fico nervosamente tranquilo. Quando o espetáculo não dava público ficava decepcionado, agora fico apenas triste, uma tristeza que é mais fruto de uma constatação (conclusão nº 2) do que de uma expectativa posta em xeque (mate).

Conclusão nº 7

Após este longo artigo, espero que nos acompanhem na nova empreitada da Petite Mort: DONA DERRISÃO. Uma peça que tem como tema o Alzheimer, completando o ciclo do projeto “Diálogos com o Absurdo”, que começa com Um Dedo por um dente, passa porDona Derrisão e desemboca em Esperando Godot. 

SERÁ QUE NUNCA PODEREMOS SUPERAR O BATMAN?



Caderno de Direção #7


Há muito o público perdeu a capacidade prestar atenção ao teatro. A mídia é um mundo de recursos e de efeitos especiais que fazem com que as pessoas percam, aos poucos, sua capacidade de imaginar, de pensar e mesmo de dialogar. Tudo ali é dado pronto e feito. A informação chega sem qualquer esforço cognitivo e físico do espectador...Conseguir tocar este público que não se esforça é uma tarefa dificílima. A sensibilidade se tornou algo atrofiado, em alguns casos, adquiriu a mesma função do cóccix: ele está lá; um dia foi alguma coisa, hoje não serve para nada...
           É preciso despertar neste espectador a antiga força de se entregar à trama, de poder sentir a motivação de um herói sem que desembolsemos 250 milhões para lhe fazer um Batman...
O teatro, no meio desse jogo, tem uma função fundamental: o resgate da sensibilidade e da cognição. É uma arte pobre em comparação às demais. É um ofício sujo, às vezes, pois requer adaptações a logradouros improváveis, inapropriados e sem equipamentos. Tudo está resumido naquele espaço cru - por isso vivo - que chamamos de cena! Ali os mecanismos são expostos, por mais realista que seja a proposta. No palco, a construção da obra faz parte do jogo, sobretudo quando cabe ao ator iluminar cada objeto, cada palavra, quando a atuação é intensa e vigorosa, feita com músculo, suor e energia...
 Um orçamento bem menor pode ter mais profundidade do que montanhas de dinheiro, passando a mensagem viva, uma vez que a história contada no palco depende do espectador para ganhar sentido. “Que merda! Vou ao teatro e ainda tenho que trabalhar para fazer o negócio acontecer”. Está certíssimo, meu querido: é quando nos esforçamos para obter as coisas que valorizamos o que antes nos era dado de “mão beijada”.
Essa era a proposta romântica da arte contemporânea que visa sempre descontruir. Mas tal descontração não pode desvirtuar-se. Se o público é esquecido, em vez de despertar seus sentidos, ela os torna inalcançáveis, pondo-os numa esfera que foge à compreensão de qualquer simples e reles mortal. O resultado disso: o Batman ganha mais uma vez. 




É PRECISO MENTIR PARA FALAR A VERDADE


Caderno de Direção #6

Apresentação nesta última quinta-feira. Ainda por conta nossa. O pagamento foi o frete que ficou como contrapartida e R$ 9,00 que resultaram de uma passagem de chapéu... Mas não reclamo. Digamos que tudo isso foi justo, pois se o dinheiro valesse o leite, derretia-se as moedas e as tomava no café da manhã. Ganhamos a nosso modo, sem odinheiro da cachaça decorrente do dinheiro para passagem que se transmuta no dinheiro para o leite das crianças, tivemos nossos lucros pois chegamos a determinadas conclusões que passam longe de desistirmos logo por aí. Se somos inteligentes é por que somos mulas, ou seja, teimosos, não obedientes a lógica clara de comando que reza "todo esse trabalho não valerá a pena/teatro não dá futuro/teatro só da passado/era para você ter feito medicina". O trabalho da Petite Mort consiste na lógica da piranha, quanto mais apanhamos mais bonito saberemos gemer... Mas chega de discurso e vamos aos fatos! 
1. O espetáculo de 50 minutos teve 1h e 30 de duração. O resultado: o público que desertou aos poucos. O problema foram os inúmeros improvisos que jogamos e que não reforçaram a trama, pelo contrário, levaram os signos do texto para outro canto.
2. A improvisação parte da necessidade. Sem faca e com fome, descascamos a fruta com as unhas e com dentes, improvisamos. Todos os cacos, todas as ações que fogem do texto tem como único objetivo trazer as pessoas para trama, funcionando como uma espécie de “ponte metafórica”, ou seja, um gancho fora da peça que tem o mesmo significado, que causa a mesma sensação contida no texto ou no roteiro. Isso pode produzir identificação tanto para o ator como para o espectador, podendo fazer as pazes entre uma proposta de cena complicada e um público arredio... O problema é quando esses improvisos não convergem para cena...
3. O foco do trabalho do ator e dos que trabalham em função dele é justamente transmitir um código, uma sensação, uma ideia. Mas isso não se faz diretamente. É preciso processar os signos na caixa cênica, alcançar a beleza, provocar inquietações, sair do trivial, enfim, como diria Ulysses Cruz, parafraseio: no teatro é preciso mentir para falar verdade. É por isso que o espetáculo dá tantas voltas. É por isso também que experimentamos. A prática nos leva a conclusões mais condizentes com a realidade e nos impulsiona a estudar a teoria...

 No meio disso, e o público? Nem sempre daremos o espetáculo que ele quer. Da mesma forma, nem sempre ele vai pagar o quanto precisamos. É justo, às vezes, “castigá-lo” com um espetáculo ainda em construção enquanto não temos galpões equipados para ensaio ou subvenções para trabalharmos em tempo integral...
Se o espectador sair reclamando, nós sairemos pensando em como fazê-lo torcer a boca. Não se pode privar a platéia do processo até que se encontre um múltiplo comum entre os dois lados da ribalta... tudo isto nada mais é do que uma relação de sincronia que une dois pólos negativos para fazer um produto positivo. 

CADA ARTE ESFORÇA-SE CONSTANTEMENTE PARA ASSEMELHAR-SE À MÚSICA (W. Paret)



Caderno de Direção #5

            Quem nunca se emocionou ouvindo uma música? O poder de determinadas melodias provocam diversos sentimentos. Elas tocam não sei qual janelinha da alma e, às vezes, nos pegam desprevenidos.
Ouvindo canções choramos, entramos em transe, dançamos... A harmonia do som faz com que nossas emoções vibrem. Se você estiver munido da música certa, até o trocar de uma roda de carro pode ser emocionante e inspirador. Faça isso, por exemplo, escutando a trilha sonora de Amélie Poulain e veja como o deslizar da chave de roda no parafuso contem uma magia infinita. Quer ir mais longe? Grave alguém fritando um ovo e edite as imagens colocando a nona de Beethoven ao fundo e sinta o desespero e a glória do estalar da cebola na manteiga derretida...
            Não que a música seja a maior de todas as artes, mas, com certeza, ela é a mais rápida para mexer com nossos sentimentos. Ela só exige que escutemos. As notas se encarregam do resto. As outras artes exigem um trabalho de percepção. Não é qualquer um que pode se emocionar com a pureza dos versos de Shakespeare.  É preciso uma determinada instrução para lê-los, decifrar seus signos, entender o que se esconde quando Ricardo III diz “Meu reino por um cavalo” ou quando Hamlet desabafa “Ser ou não ser, eis a questão”.
             Por outro lado, nenhum filme americano prescinde de uma boa trilha sonora... As motivações dos personagens podem ser ridículas, mas a musiquinha parece que autentica tudo. Tire a música de boa parte dos filmes de ação e veja como não têm nenhuma profundidade, exceto um enredo que segue praticamente a mesma fórmula.
A melodia preenche os espaços, ela ocupa de tal maneira a mente que acabamos embarcando nas histórias mais esdrúxulas inconscientemente e, sem perceber, temos nossas sensações manipuladas a torto e a direito...
Neste caso, a música tem um grande poder, que pode ser usado para o bem ou para o mal. Caminhemos o fim deste artigo para o mal, pois o bem das boas melodias todos nós já o sabemos...
Propagandas, campanhas publicitárias, festas. Para que existam, a música é quase como uma necessidade vital. Passe no bar e tire o som. Se você não receber uma garrafada na cabeça verá que a sensação é de que as pessoas não têm mais assunto. A grande verdade é que elas não têm mesmo nada a dizer. A música preenche esse vazio. Faz com que haja um clima de convivência que talvez sequer exista... Se, de repente, proibissem os políticos de vincularem jingles de campanha veríamos quanto os discursos são vazios e repetitivos.  A situação chegou a tal ponto que algumas músicas são simplesmente o número dos candidatos repetidos no meio de quatro ou cinco acordes...
Neste caso é música é uma arma ideologicamente letal. Duvido muito que um povo embalado pelo axé e pelo sertanejo universitário consiga converter o quadro de corrupção de Brasília. O que tais ritmos dizem é “deixa tudo para lá vamo pular” ou “te arruma e vamo para balada”...
Um estranho paralelo se faz quando, ao morrer, Hamlet diz “O resto é silêncio”. Será que a necessidade de tanta música para preencher os vazios não seja uma constatação de que estamos mortos, mas, diferente do personagem de Shakespeare, não sabemos? 
Em 1 Dedo por 1 Dente, Procópio e Torquato se debatem nesse vazio. Nesse espaço ideológico que é preenchido arbitrariamente. Quando falam do "nada", não se trata de uma ausência de tudo, antes, trata-se da impressão de todo esse barulho que mascara um imenso vácuo, que seria trágico se nós o chamássemos de existência.      

A Ideia de Pós-Modernidade e a Indiferença de um Deus


O ruim de assistir uma peça com moldes pós-modernos é que nós não sabemos muito bem por onde julgá-la. É preciso ter cuidado, para não ser acusado de leigo. Trata-se de uma massa sem forma, que não tem começo e nem fim, uma orgia iniciada onde você não sabe muito bem onde se meter, mas acaba se metendo.
         No meio de toda essa confusão, penso: hoje em dia, algo que seria extremamente pós-moderno, no sentido da novidade, seria a montagem de um clássico, da maneira clássica, obviamente, uma movimentação bem marcada no palco, com direito atextocentrismo declarado - embora ele ainda exista nas ditas montagens pós-dramáticas, o que muda é que, antes, o olho se direcionava àquilo que o autor escreveu e, agora, as atenções migraram para aquilo que o teórico escreveu.
       Modernidade, no geral (englobando neste termo o moderno, pós-moderno e contemporâneo), nada mais é do que o desespero de um tempo que não quer ir embora de jeito algum. Ele quer dizer logo o que é, mesmo que seja prematuramente.  Se firmar logo nos espaço embora não haja amarras, se materializar de vez mesmo não sendo concreto... A única coisa que firma este anseio é o discurso, e nada mais volátil e indefinido do que isso. Tudo vem de uma necessidade de se eternizar logo de uma vez por todas e, com o tempo tão curto, só podemos dizer, afirmar repetidamente, até que o fastio dos ouvidos acabe por ceder e aceitar o boato como verdade. 
          Clamar-se! Aparecer! Ser reconhecido! Ir ao paraíso! A ideia de toda esta modernidade tem um contraponto: miramos na eternidade, no futuro, e esquecemos o imediato, o presente, o aqui agora, em suma, o presente... Há um deslocamento de interesses que faz o subjetivo ser objetivo, não havendo mais ação direta, explico-me:
         
O cidadão vai todo dia à igreja. Comporta-se como um religioso mesmo que seja no lato-senso. O que ele mira é uma eternidade, um lugar galgado no céu, uma absolvição dos pecados, um status superior no sentido físico e psicológico diante dos demais, daqueles que não temem. Se todo esse fervor dos cultos e missas fosse utilizado para resolver o problema do crack, o problema da educação, da fome, da desigualdade, o mundo seria mais justo e, portanto, mais cristão. Mas o objetivo do cidadão, a priori, nada mais é do que a eternidade, mesmo que seja prematura. Ele faz o seu papel. Ele cumpre sua obrigação. Ele salva a sua alma. Ele se volta para um objetivo supremo, maior, intangível, negligenciando o concreto, o palpável, o que está bem de baixo do seu nariz. É triste pensar que toda obra de deus sirva para nos conduzir rumo à indiferença para com próximo. São Luís é uma prova de que existem tantas pessoas que vão ao céu de mala e cuia e, ao mesmo tempo, tantos que vivem, verdadeiramente, no inferno. Como isso pode existir sem ser chamado de absurdo? As pessoas pensam nisso? Claro que não, seu foco está lá em cima. Elas andam olhando para céu, esbarrando nos problemas, pisando em buracos, achando que tudo será, um dia, recompensado... E se o paraíso fosse uma mentira? Se não houvesse nenhuma recompensa? E se, voltando ao assunto inicial, para o artista da modernidade e para o temente a deus, não houvesse reconhecimento?
            O mundo entraria em colapso, pois a modernidade é feita, antes de tudo, de um discurso. A ideia de que aquilo que fazemos não será ouvido por orelhas de luz ou de fibra-óptica, traria o caos, deixaria o homem desnorteado ou, se pensarmos positivamente, faria com que o homem fizesse o bem simplesmente pelo bem, independente da sua vaga no Éden, que o artista faça algo para tocar o espectador e fazê-lo sentir alguma coisa, sem estar mudando as concepções de arte não importa como, ou seja, fazendo, no presente, o que já se consuma como História da Arte... É certo que o não-reconhecimento traria o êxodo, tanto da casa de deus, quanto da casa de espetáculos. Mais seria uma diminuição justa, haja vista o exorbitante número de crentes superficiais e de artistas vazios. O que sobraria deste dilúvio seria unicamente a fé verdadeira, tanto na obra de arte, tanto na obra de deus.

POR QUE LATINO É UM GÊNIO





Caderno de Direção #3

                A arte não tem a menor utilidade. Ponto. É preciso ter coragem para dizer isso, mas trata-se da mais pura verdade. O mundo gira, as lojas abrem, Luan Santana cantará independentemente das galerias do Louvre...
O que acontece hoje na cena contemporânea (digo, na cena atual) é que a arte encontrou um “departamento” na sociedade. Encontrou uma maneira de ser auto-referencial, auto-suficiente, enfim, autônoma, divorciando-se do público...
 Criou-se uma “coisa”, uma maneira de entender essa “coisa” e, ainda, um meio de gostar desta “coisa”.
É como o cigarro: você é uma pessoa normal sem nunca ter tido a necessidade de fumar, daí você fuma um cigarro, dois três, quatro, e cria o costume de fumar, esse costume vira uma necessidade e, depois, você não consegue viver sem o dito-cujo.
O mundo sem cigarro e o mundo sem arte... Não é difícil intuir que ele seria o mesmo, pois a arte e o tabagismo são, no séc XXI, necessidadesfabricadas!
A arte que basta por ela mesma.
Em meio a esta invaginação da produção, cabe à crítica, às galerias, aos patrocinadores, aos colecionadores, aos teóricos dizerem o que é para ser é bom ou ruim. No jogo do bicho, eles são as grandes cafetinas de prostitutas que perderam a capacidade de seduzir.
O que consagra Latino é o que põe em evidência o artista contemporâneo: o barulho que se faz em volta daquilo, e não, aquilo! As coisas que falam dele e não o que ele fala...
A arte está nas mãos dos vinculadores. Ele pertence aos intermediários. São eles que a “traduzem” para público...
Negar que os mecanismos da arte são diferentes daqueles da cultura de massa é ignorar o mundo midiático em que vivemos.
Latino é um gênio, pois, ao contrário dos “Duchamps” que saíram de moda, dos “Brechts” que vão e voltam, mas nunca ficam, Latino faz sucesso desde 1994 num mundo de sucessos efêmeros.
É de se admirar, no mínimo, ou de se suspeitar, ao máximo...
No divórcio da arte com público, os intermediadores estabelecem a comunicação como se fosse um casal em litígio que dialoga através de seus advogados. Eles reafirmam as partes envolvidas, eles “explicam” a arte que se tornou autônoma e que, mesmo assim, precisa, de alguma forma, circular.  
Se eu sou artista, Latino também é! Por que não? Sou democrático! Pense bem:







        O poder deste Ser nada mais é do que o de “espalhar boatos” que vão desde o “escute essa música, é a música do momento” ao “a vida não é o que você pensa que ela é”
O que faz a Arte Contemporânea e o pop star Latino serem, no fim das contas, a mesma coisa é que ambos entendem que o barulho que se faz em torno da conversa é mais importante do que o diálogo.  

TORTURANDO UMA PLATÉIA POR SESSENTA MINUTOS


Caderno de direção #2


            Um drama ao público desavisado é um drama ao quadrado.
            Apresentamos mais uma vez “um dedo por um dente” na periferia de São Luis.
              Não com esse olhar piedoso que lançam algumas companhias de teatro rumos às margens,
  Não com projetos que carregam mais uma justificativa do que uma meta,
 Não com intuito de educar o cidadão a jogar lixo no lixo ou de não poluir a água...
O que lançamos assim, quase irresponsavelmente, foi um “drama do Absurdo”. Um texto carregado de filosofia e... que precisa de muito trabalho para que cause alguma reação.
A apresentação do último domingo foi um fiasco.
No meu canto, senti o outro lado da tortura de fazer refém uma platéia durante quase sessenta minutos...
O que aconteceu? No galpão onde estávamos havia vários ventiladores e a voz dos atores, ainda por cima, reverberava. O que se escutava era o texto moído pelas paredes.
Nesse tempo, operando a luz, percebi uma coisa: o que adianta toda uma concepção de cenário, de figurino, de maquiagem, dramaturgia se, no canto da sala, tem uma menina que balança a perna insistentemente querendo ir embora?
Como professor, aprendi a perceber, de imediato, os sinais de inquietação das pessoas.
Um bater de pé frenético contra chão me tira rapidamente do compasso.
Um bocejo rasga meu pensamento em dois.
Passar uma hora vendo uma platéia que não reagia foi um suplício chinês.
Mas, controlando minhas convulsões e abrindo minha percepção, notei um detalhe terrível no espetáculo que vem nos acompanhando desde as primeiras montagens e, só lá, fui me dar conta.  
Sem entender, nem eu mesmo, o texto, observava os movimentos. Muitas partes, muitos gestos, muito da movimentação estava solto. Tentava encaixá-los no contexto da obra, tentava ver se eles comunicavam sem precisar do apelo da voz. Inútil...
O que sobrou foi apenas aquilo que se via, já que o resto era abafado pelos ventiladores.
A imagem das duas caveiras andando de um lado para outro sem muito norte.
E eis aí que entra o detalhe perigoso: VESTIMOS A FIGURA DAS DUAS CAVEIRAS!
Explico-me:
Com as armaduras que imitam ossos debaixo do figurino, com a maquiagem que imita o crânio, fazemos os dois esqueletos, mexemos e nos movimentamos enquanto tal, falamos com uma “vozinha” de esqueleto que lembra um pouco aquela do palhaço e esquecemos, montados nesta armadura, que, antes das duas caveiras, existem dois personagens: o Procópio e o Torquato.
Limitados a uma partitura da imagem de dois esqueletos, e não nos personagens em si, perdemos boa parte das nuances que poderíamos dar a cada fala, do jogo que poderia ser feito com cenário e da movimentação que poderia ser mais detalhada.
O que prevaleceu foi o caricatural em função do estrutural.
Fiquei pensando nesses atores que se vestem de atores quando vão atuar. Alguns contadores de história, por exemplo, tem sempre a mesma voz, a mesma gesticulação que parece que foi feita para contar qualquer tipo de história.
Outros atores, do pós-dramático, se vestem de atores pós-dramáticos e falam tudo com uma entonação de quem está com raiva “Eu sou a miséria do mundo!” e condenasse o público por não entender que “eu sou a miséria do mundo”.
Ambos esquecem que a mensagem a ser entregue prepondera sob a imagem daquele que a diz. Não sei se já repararam, mas quase todo ator de teatro de empresa tem o mesmo jogo: uma mistura de palhaço com mensageiro da paz, de professor vestido de criança...
Indo mais longe, certa vez, uma contadora de história da argentina Monica Chiesa fez uma apresentação na Aliança Francesa. Tratava-se de uma história banal de uma bruxa e de um gato... Ouvindo, com atenção, fui transportado e, quando terminou a contação, eu me encontrava tão embasbacado quanto uma criança...
Fuçando um pouco mais, me lembrei que certa vez ouvi outra contação de história que tinha também uma fábula dessas banais e fiquei irritando pensando que a atriz me tratava por um imbecil, falando compassadamente, gesticulando com obviedade e abrindo demais os olhos como se perguntasse “está entendendo, menino?”.
Em suma, ela estava mais preocupada em dizer que estava contando do que, de fato, contar, envolver as pessoas com a história e não com as suas oficinas do diabo a quatro e sua função como atriz na face da terra.
Tudo bem que, para criança, tudo é magia, até certo ponto. Mas eu sou uma espécie infeliz de público exigente. Não gostei daquela tarde de domingo, achei um nojo, não piso no pátio daquela escola!
Voltando à peça, o desafio da próxima apresentação de “Um dedo por um dente” é enxotar essas duas imagens que atravancam a mensagem. Retirar estas armaduras, esta figura que criamos de “como deve ser estes dois personagens” em detrimento de objetos mais diretos: o que eles são (disso já sabemos) e como eles se resolvem na cena (aí o bicho pega)
A questão é continuar montando até conseguir acharmos uma consistência. Não que o espetáculo tenha que ficar pronto, como um objeto imutável, mas é preciso que alcancemos uma solidez mínima para ter o poder de moldá-lo conforme convir.
Vale a pena da uma conferida na próxima apresentação, neste domingo, no ADOLESCENTRO, Vila Embratel. Aos ensaios, novamente!



Um dedo por um dente - Início


CADERNO DE DIREÇÃO  1#



Ao decorrer do processo percebi a movimentação não estava objetiva. O gesto era aleatório, não se encaixava no jogo e trazia dispersão. Os quinze minutos iniciais da peça não prendem a plateia. A peça começa sem força, pegando ritmo, apenas, do meio para final.
É claro que os personagens não podem se revelar logo no início. É preciso que eles deem indícios, pistas para que a plateia já comece a decifrar, criando assim expectativas que serão eclipsadas de acordo com o andamento da peça.
O início da peça é o estabelecimentos de trucagens que vão induzir o espectador, enganá-lo, avisá-lo, excitá-lo, inseri-lo ou excluí-lo.
É preciso definir, logo na primeira cena, que jogo é jogado.
Nesse caso, se faz necessário apresentar:
As características das personagens (extraídas através do embate de suas contradições, de seus conflitos)
O contexto, a ação anterior. (e, ao citá-los, definir como os personagens reagem)
Estabelecer um ritmo, através da tensão que implica cada cena. (Uma cena bem tensionada, com os polos bem definidos, impõe automaticamente um ritmo)
Por exemplo: se um personagem quer uma coisa, ele age com insistência. Se um age com insistência, o outro poderá reagir com impaciência. Dessa forma a cena está polarizada, tensionada.
Tendo isso em mãos, é preciso estabelecer o jogo, que nada mais é do que a iteração dessatensão com os demais elemento da cena: cenário, luz, proposta da peça (comédia, tragédia, comércio), os limites de cada ator.
Tensão, partindo da eletrotécnica, nada mais é do que a força motriz que faz com que a energia circule. A boa direção fara com que essa energia circule na cena sem se dispersar, sem causar sobrecarga, sem, oxalá, curto-circuitos!
Partindo daí, deve-se perguntar: o que move o personagem? Dizer quem ele é, suas características, seu contexto histórico, pode ajudar, mas não responde à pergunta. O que move o personagem são os seus conflitos, de ordem interna, ou externa, ou seja, os conflitos que ele tem em si mesmo, e/ou os conflitos que ele tem com a realidade que lhe é imposta pela ficção.
Este conflito desembocará na AÇÃO, matéria-prima do drama. É nela que tudo será pautado!

Apresentação na Casa Artes das Bicas (Coroadinho 23/09/2012)