sexta-feira, 6 de junho de 2014

ANÁLISE DRAMATÚRGICA DE "Meu Guri"






Quando, seu moço              
Referência a um INTERLOCUTOR. Elemento para quem se fala, presente FORA da cena.
Nasceu meu rebento
REBENTO / palavra que faz eco com ARREBENTAR e BENTO. Rebento se faz de forma AGRESSIVA. Ideia de PARTO como BENÇÃO VIOLENTA
Não era o momento
Dele rebentar 
ROMPIMENTO DA BOLSA. Ato imprevisto vindo do útero. IMPREVISTO vindo de dentro.  AMNIÓTICO LÍQUIDO. Assonância com REBENTO (efeito eco).

Temos aqui os eixos  
SURPRESA / IMPREVISTO – DENTRO / FORA
Já foi nascendo
Com cara de fome
Nascer: ir para fora.
Fome: necessidade.

E eu não tinha nem nome
Prá lhe dar
Como fui levando
Não sei lhe explicar

Fui assim levando
Ele a me levar
INDIGÊNCIA DA MÁE E DO FILHO.
Os dois não têm identidade. Os dois, de certa forma, ainda não nasceram para sociedade.
Os eixos DENTRO / FORA, como nascimento / morte; existência / não existência são tensões que vão se fortificando ao longo do texto.
“Como fui levando?”. Não sei LHE explicar.
VARIAÇÃO-REPETIÇÃO DE GESTAÇÃO. Mas agora o que está   sendo levado é a SITUAÇÃO.
Ela “levou” o que estava DENTRO por nove meses. Agora “leva” o que está FORA.  Nos dois campos está o REBENTO. Aqui se obra uma junção do PASSADO e do PRESENTE. Do filho pequeno e do filho crescido.   
“Fui assim levando ele a me levar”. Inversão dos papéis MÃE e FILHO. Mas, quando o filho leva, temos o jogo de palavra “alguém me leva”, “alguém me engana”. Ao mesmo tempo, temos o sentido literal da expressão. “ele me leva”, ele me acompanha.
O mecanismo duplo de MÉPRISE (mau entendimento) se instala neste último verso. O FORA engana o de DENTRO. O DENTRO fantasia o FORA.    


E na sua meninice
Ele um dia me disse
Que chegava lá
Referência a um novo “FORA”, UMA SAÍDA, UM DESTINO (QUAL?)

Olha aí! Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!

RECORTE DE TEMPO PARA O PRESENTE. “Olha aí”, o interlocutor vem para o tempo no qual está sendo proferida a fala.  
As figuras de diálogo dominantes até aqui são a NARRAÇÃO e o Profissão de Fé.  
No primeiro, a referência a um passado inserido no discurso. No segundo, a exposição de uma “crença” da personagem que surge independente de qualquer conflito. Nesta crença está a imagem central do REBENTO.

Como não sabemos qual é o problema, a trama é acentrada. Ou seja, não há um problema específico para ser resolvido. Há uma ignorância por parte do personagem MÃE em relação ao que acontece com o REBENTO. Não há um mecanismo de conflito. O que é denunciado pela melodia na música, calma e agradável.

Se fosse uma peça, seria uma peça paisagem. O expectador ao poucos, como um andarilho, vai recolhendo as peças do quebra cabeças e montando a situação dramática.
DEFICIT TEATRAL DIFUSO (NÃO SE SABE AINDA MUITO BEM O QUE CAUSOU ESSA SITUAÇÃO)
Chega suado
E veloz do batente

PREDOMINANCIA DO PRESENTE CONOTANDO UM HÁBITO

SUOR / VELOZ / BATENTE

BATENTE ALUSÃO DE FECHAR PORTA / MOVIMENTO DE FECHAR PORTA / BATER / ENCERRAR A REFERÊNCIA DO “FORA”- FORA DA LEI

VARIAÇÃO-REPETIÇÃO DA NEGAÇÃO MÉPRISE DA MÃE DO QUE ACONTECE FORA DE CASA, DO BATENTE TRABALHO (DELE E DO FILHO / PORTA (CASA) 

Chega suado
E veloz do batente

Uso do tempo presente do indicativo. CONOTANDO UM HÁBITO.
SUOR / VELOZ / BATENTE

BATENTE alusão de fechar a porta. MOVIMENTO DE FECHAR PORTA / BATER / encerrar a referência do “FORA” no lado de fora. Configura-se um sistema de VARIAÇÃO-REPETIÇÃO da negação da mãe do que acontece fora de casa, no BATENTE TRABALHO do filho.



Traz sempre um presente
Prá me encabular
“SEMPRE UM PRESENTE”. Novamente o presente como tempo/situação em confronto com o presente objeto vindo do filho.
Uma pequena tensão se instala e, novamente, não é, nem de longe, percebida pela mãe   


Tanta corrente de ouro
Seu moço!
Que haja pescoço
Prá enfiar
Presença do Interlocutor, mas agora Mesclado a uma Interjeição “SEU MOÇO = NOSSA!” . Esse movimento abafa o INTERLOCUTOR que de PESSOA COM QUEM SE FALA passa a ser uma interjeição no meio do discurso uso. Ele é rebaixado numa espécie de hierarquia sintática.
Ao mesmo tempo, o comentário “SEU MOÇO” é um movimento que a mãe faz para convencer o que está FORA (seu moço, sociedade) que o DENTRO (rebento, presente, roubo) é bom ou, pelo menos, tem as melhores intenções do mundo.   


Me trouxe uma bolsa
Já com tudo dentro

NOVO PRESENTE: BOLSA COM TUDO – OU O TUDO (A VERDADE, O FORA)
Nova REPETIÇÃO-VARIAÇÃO do ARREBENTAR no primeiro verso como referência a bolsa de líquido amniótico.
De certa forma, há novamente a SURPRESA da primeira estrofe, mas esta se dá somente para o expectador. Nesta estrofe, Chico entrega o ladrão para gente, mas para mãe tal denúncia não atinge. Ela gesta um Bandido /REBENTO sem o saber.    

Chave, caderneta
Terço e patuá
Um lenço e uma penca
De documentos
Prá finalmente
Eu me identificar
COMPLETA CEGUEIRA: De um lado todas as provas que, em vez de IDENTIFICAR o que se trata, ela SE identifica. Mas não se trata de se identificar com uma tomada de consciência. Antes, trata-se da obtenção de uma NOVA IDENTIDADE vinda do FORA (fora da lei).  
O FORA se tornou DENTRO
Ao mesmo tempo uma nova VARIAÇÃO-REPETIÇÃO do verso  “NÃO TINHA NEM NOME PARA LHE DAR”. Não há, no vocabulário da mãe, no léxico materno desta situação, palavra que nomeie o REBENTO de ladrão.  

Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!

Chega no morro
Com carregamento
Pulseira, cimento


Gradação MORRO, CIMENTO e CARREGAMENTO – imagem que remetem ao acúmulo e ao peso.  Ao mesmo tempo, se espiarmos as últimas estrofes, temos aqui as sombras da tragédia MORTE (EU MORRO) TERRA (CARREGAMENTO) E TÚMULO (CIMENTO).
Relógio, pneu, gravador

NOVA GRADAÇÃO “RELÓGIO, PNEU, GRAVADOR” - REFERENCIA AO ROUBO DE CARGA
Novas sombras da morte do final RELÓGIO (TEMPO CORRENTO), PNEU (PRETO, CARRO, TRANSPORTE DE DEFUNTO, RABECÃO, CAMBURÃO) e GRAVADOR (IMPRENSA, foto do jornal com faixa preta)
Rezo até ele chegar


Mecanismo de ESQUIVA com a reza
Surge um novo FORA (DEUS, CÉU)
Fuga da morte, mas, ao mesmo tempo, presença de um ALÉM DE MUNDO. Um além daquele plano de realidade que comprime a mãe. 
Cá no alto
NOVA ESQUIVA. Um se semântico se faz entre o ALTO/CÉU e ALTO/MORRO.
A tensão DENTRO e FORA chega ao paroxismo.
Essa onda de assaltos
Tá um horror
NOVA ESQUIVA (aliás, todo o texto é uma esquiva, não?) e ao mesmo tempo, no nível do macrossomo, se obra uma DEFESA: ela empurra a morte do filho e fato do filho ser o causador ou participante de tudo isso (onda de assaltos)

“está um horror” – pode ser também uma DEFESA do horror que pode ser a revelação.   
VARIAÇÃO-REPETIÇÃO DE “chega suado veloz do batente, traz sempre um presente para me encabular”. Só que, aqui, ela se encerra no batente da porta no aguardo do filho, o PRESENTE (variação ENCABULAR e HORROR). As tensões são polarizadas: a SURPRESA não é boa se passar pela porta. A surpresa não pode passar pela porta. A mãe é o batente da porta que só permite a entrada do filho de “DENTRO – REBENTO” e não do de “FORA – o BANDIDO, ou a notícia do bandido, ou a morte do filho bandido

Eu consolo ele
Ele me consola

EFEITO ECO DE “ELE”
Boto ele no colo
Prá ele me ninar

REPETIÇÃ VARIAÇÃO DE “REBENTO”,
Ao ninar um filho já grande (ou que aos olhos da mãe nunca cresceu), o filho (PASSADO) que nina a mãe.
Efeito de reciprocidade conseguido pela repetição do “ele” na frase precedente criando uma espécie de vai e vem “eu consolo ele / ele me consola – ela consola ele/ ele consola ela” movimento do ninar de vai e vem. Os dois são sujeitos e objetos da ação. Mas, pela disposição da frase, o filho está no meio e a mãe está nas pontas.    

De repente acordo
Olho pro lado
E o danado já foi trabalhar
Olha aí!
PARTIDA PARA O FORA
VARIAÇÃO-REPETIÇÃO DE “não era o momento dele rebentar”: O FILHO SAIU – O GURI, O MEU GURI (ETERNA CRIANÇA)

“DANADO”, de acordo com as gradações e referências da morte, cria também uma dupla conotação “DANADO BOM – TRABALHADOR”, DANADO MAU “AMALDIÇOADO”
Novamente a tensão DENTRO E FORA, ignorada através de inúmeras esquivas e defesas obradas pela mãe
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!

ORGULHO DA MÃE PELO FILHO “DANADO”
Chega estampado
Manchete, retrato
Com venda nos olhos
Legenda e as iniciais
INVASÃO DO FORA, AINDA IGNORADO (jamais aceito) PELA   MÃE.
O menino está estampado no jornal. as iniciais e a venda nos olhos indicam que é um menor e, ao mesmo tempo, são uma alusão à “MÃE CEGA QUE NÃO VIU OS PRIMEIROS INDÍCIOS” de aquilo poderia ocorrer.
Esse jogo de indícios vem sendo anunciado desde o início com VARIAÇÕES-REPETIÇÕES:
1.      Chega veloz do batente, traz sempre um presente para me encabular
2.      Me trouxe uma bolsa
Já com tudo dentro
3.      Morro, cimento e carregamento / relógio, pneu gravador
4.      De repente acordo, olho para lado, o Danado já foi trabalhar”.

O último indício é UM JORNAL que,  ainda assim, não está FORA (PRESO , FORAGIDO OU MORTO).  O jornal o põe DENTRO do microssomo “meu guri” criado pela mãe O FORA.

Eu não entendo essa gente
Seu moço!
Fazendo alvoroço demais

O primeiro olhar para o fora: “ESSA GENTE”, SEU MOÇO”, “ALVOROÇO”.
Ela SE CONFESSA, ALÉM DE CEGA, SURDA.O INTERLOCUTOR, OS INTERLOCUTORES NÃO CONSEGUEM ADENTRAR NO MECANISMO DE DEFESA DO DENTRO “MEU GURI” CRIADO PELA MÃE.
O TEXTO CRIA O EFEITO DE UMA ETERNA PROFISSÃO DE FÉ, ou seja, na crença de uma imagem de FILHO.
AO DEFENDÊ-LO ELA SE DEFENDE DE PERDÊ-LO PARA ESTE FORA. Mecanismo instintivo da mãe.
O guri no mato
Acho que tá rindo
Acho que tá lindo
De papo pro ar
“MATO” COMO ECO DE “MORRO”
NEGAÇÃO ABSOLUTA DO FORA,
DO CONCRETO.
A MANCHETE VIRA RETRATO DE CABECEIRA DE CAMA OU DE MESA DE CENTRO, FOTO DE RECORDAÇÃO.
O FORA, VIRA O DENTRO, ELE NÃO CONSEGUE INVADIR O ESPAÇO “MEU GURI” ESTABELECIDO. PELO CONTRÁRIO, ELE É CONVERTIDO EM ALGO DO DENTRO, COMO JÁ DITO, UM BOM (LINDO) RETRATO DO MENINO DE “PAPO PARA O AR”

PAPO COMO CONVERSA (TUDO QUE SE FALA PARA ELA É JOGADO PARA O AR) VARIAÇÃO-REPETIÇÃO DE SURDEZ “não entendo Essa gente fazendo alvoroço demais”  

O guri no mato
Acho que tá rindo
Acho que tá lindo
De papo pro ar
NOVA ESQUIVA E MOVIMENTO PARA A IMAGEM DO “GURI, REBENTO”
Desde o começo eu não disse
Seu moço!
Ele disse que chegava lá
FINALIZAÇÃO DA PROFISSÃO DE FÈ  “não disse, seu moço, que ele chegava lá”
OPERA-SE A CISÃO DO FORA COM DENTRO. A CONCLUSÃO REFORÇA A IDEIA DESSE CORTE. NADA IRÁ CONVENCÊ-LA, NADA IRÁ “ARREBENTAR” COM A IMAGEM QUE ELA TEM DO REBENTO.
QUANDO DIZ “desde o começo” FAZ-SE UMA VARIAÇÃO-REPETIÇÃO DOS PRIMEIROS VERSOS.
A MULHER, AO PARIR, SE SEPARA DO QUE ESTAVA GESTANDO PARA NOVAMENTE TÊ-LO COMO FILHO.
 EXISTE O MOVIMENTO DE SEPARAÇÃO E UNIÃO
QUANDO ELA NEGA A NOTÍCIA DO JORNAL, ELA ROMPE COM REALIDADE. ELA PARI O GURI MORTO QUE É NOVAMENTE COLOCADO NOS BRAÇOS DA MÃE ATRAVÉS DO JORNAL COMO VIVO.


CONCLUSÃO EM UMA IMAGEM:
 ELA PARI O FILHO PARA   REALIDADE E A REALIDADE LHE PARI O FILHO, MAS OS DOIS NASCIMENTOS, PARA MÃE, TEM CONOTAÇÃO POSITIVA.     



             

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