Convém-se
que a Tragédia é a derrota do Homem diante da vontade divina. Não se luta
contra o que foi preestabelecido pelos “Céus”.
Por mais cruel que o destino possa parecer, o Homem é regido por
estas convenções de ordem divina e/ou social e deve respeitá-las. O ato que
vai de encontro àquilo que lhe foi conferido pelos deuses ou/e pela sociedade culminará
em um terrível fim. Seu caráter transgressor, que parecia sua maior qualidade,
será o responsável por sua queda. Mesmo arrependido, continuará caindo até se
chocar contra um sólido fundo trágico...
Nós, do lado
de cá, sentindo terror e piedade, nos purgamos daquele defeito de caráter que
parecia tentador em um primeiro momento, pois deu ao Herói toda glória que
possuía; mas, depois, tornou-se indigesto, daí a purgação. Essa é a catarse,
grosseiramente resumida e efetivamente útil quando se trata de adaptar o
sujeito às convenções:
“Aristóteles formulou um poderosíssimo sistema purgatório, cuja finalidade é eliminar tudo que não seja comumente aceito, legalmente aceito, inclusive a revolução, antes que aconteça. O seu Sistema aparece dissimulado na TV, no cine, nos circos e nos teatros. Mas a sua essência não se modifica. Trata-se de frear o indivíduo, de adaptá-lo ao que pré-existe.” (BOAL, 1931).
Em Velhos Caem do Céu como Canivetes, da Pequena Cia de Teatro, temos uma montagem que vai de encontro a todo esse sistema coercitivo que é denunciado por Augusto Boal em Teatro do Oprimido. A Tragédia é posta ao avesso. O que se vemos é um drama com ares trágicos, ou, uma “antitragédia”. Já explico...
O “Ser Alado” (Jorge Choairy) desce na Terra e encontra o “Ser Humano” (Claúdio Marconcine). Quando as luzes acendem, o cenário é um ambiente caótico, onde tudo parece desconexo. A unidade desses objetos em desordem se dá na movimentação do Ser Humano: sua rotina, aparentemente, é pôr tudo em ordem para, depois, tudo desfazer. Aquele terreno é um produto de suas ações sob a natureza. Não temos uma ligação com a ação-texto. Não se opta por um texto dito com nuances bem definidas. Parece que tudo que se fala é amortizado por esta natureza solidificada pelos elementos dispostos em cena e pelas as ações-físicas que fazem com que os personagens interajam com os objetos e entre si. Seus corpos são anormais. O andar, a postura e a voz fogem do corpo cotidiano. O contraponto é este: um corpo fora do padrão executando ações que revelam um determinado padrão (determinado): o Extracotidiano Vs Cotidiano vivendo num espaço mínimo. No primeiro encontro entre os dois personagens esse jogo logo se revela: o estranhamento causado pela insólita visita não se dá pelo encanto, ou pela admiração de ver um ser de asas. É, antes, um “que diabo é isso...”.
Ambos são
apresentados. Conhecem-se. Interpelam-se. Coabitam. Convivem. O Ser Alado tem
uma missão: fazer com que o Ser Humano acredite em algo para além daquele plano
terreno (questão que fica em aberto), mas, em suma, significa que ele quer
persuadir o homem a se mover, evoluir, a sair dali, daquele jogo repetitivo. O
Ser Humano, contudo, é imóvel. Ele se atém às necessidades da vida. Luta, mesmo
que de forma parcimoniosa, contra fome e contra a sede. Ao mesmo tempo, ele cria
engenhocas para passar o tempo, inventando outras necessidades - necessidades
fabricadas - como a de ficar tonto através de um pequeno aparelho feito com a
peça central de um ventilador de teto. O Ser Alado tenta se adaptar, construir
uma rotina dentro daquele plano, enquanto “convence”, inutilmente o Ser Humano
a se mover. Seu gesto, que antes se baseava na ação de mexer os ombros,
repelindo as asas, acaba ganhando os ares daquela rotina. Ele, inclusive, testa a
máquina de ficar tonto e se mostra curioso em relação às engenhocas produzidas
pelo o Outro, como o Manifesto à Eletricidade. Há uma mudança em seu corpo e a
dramaturgia do ator ganha um significado na trama e conta algo também.
Os dois planos: o que está dentro (a
realidade) e o que está fora (o além) se confrontam através dos corpos dos dois
atores encerrados naquele universo retratado, cenograficamente, com materiais
retirados do lixo.
Ao
final, o Ser Alado desiste. Voltaria para o lugar de onde veio, mas eis que vem
o golpe da outra dramaturgia, aquela, do velho dramaturgo, aqui, Marcelo
Flecha: o Ser Humano mata o Ser Alado com uma cacetada! O elemento textual decisivo se revela através de uma didascalia, provavelmente: Ser Humano defere uma boa e segura bordoada
no Ser Alado, matando-o (sic). A grande catástrofe é um ato físico.
Novamente o corpo e o movimento. Aqui, finalmente, o orgânico, o indeterminado,
o transcendente se junta ao material, ao concreto, ao plano terreno prático,
rotineiro, que fará do Ser Alado a refeição, a galinha do Almoço - o resto é
para Janta.
Onde
está a tragédia? Ou a “antitragédia”, como disse antes? Como um Sistema Coercitivo, como alude
Augusto Boal, a catarse visa purgar o homem de algum defeito que não é adequado
para o Sistema. Normalmente, representado por um oráculo ou pelos deuses, esse
Sistema se apresenta com ares superiores, com as pompas do Além e do Supremo.
Em Velhos Caem do Céu como Canivetes,
essa lógica se inverte. Lá, a realidade pré-estabelecida é a miséria, é a fome,
é a vida do homem presa a uma rotina que gira em torno do material, do
imediato, do mecânico. Não há um “fora”,
um “macrossomo”, aquilo é o tudo. Nesse novo sistema entra o Ser Alado
pretendendo a mudança. As asas significam a possibilidade do livre
deslocamento. Não há revolução sem movimento. E é aqui que o Ser Alado sofre o
grande golpe trágico, não dado pelos deuses ou pelo Estado, mas por um simples
mortal e cidadão comum. O fim: a morte. As luzes: vermelhas. O que era para ser
purgação se torna refluxo. Volta para tripas, ou seja, para o chão do corpo,
para o jogo maçante das necessidades diárias.

O Destino é,
nesse caso, a sobrevivência. Na tragédia, tudo volta a ser como antes através
do terror e da piedade que sentimos pelo herói - basta não seguirmos o seu
exemplo e não achar precioso o seu defeito (Hamartia), afora isso, tudo está
perfeito. No quadro dramático “antitrágico” de Velhos Caem do Chão como Canivetes tudo volta a ser como era antes,
ou seja: terror e piedade; pois, apesar da refeição garantida, outros dias de
míngua e desumanidade hão de continuar. Sentimos terror da miséria e piedade
daqueles que vivem nessas situações, tais sentimentos estão em nosso cotidiano
- basta assistir aos jornais e ver que embrulho isso dá. O que há de ser “purgado”
aqui é a nossa ingênua crença de que isso, um dia, pode ser mudado, ou seja,
que um dia a pobreza ganhará asas e sairá voando de nossa realidade.
“É
pensando que a porta é alta que batemos nossa cabeça na parede”
Igor Nascimento
Meu caro, confesso a lágrima ao identificar sua absoluta compreensão. Creio ser o diálogo com o outro o único objetivo do artista - do objetivo da arte já desisti. Obrigado pelas palavras, pelo tempo dedicado, e pela análise. Sua crítica engrandece nossas ações.
ResponderExcluirmaravilhoso, igor!
ResponderExcluirampliou questões que minha fruição empreguiçou, rs