Toda vez que olho aquele mendigo sinto algo
diferente. É seu corpo na chuva, no sol, na noite. Subitamente, a piedade me
assalta... Não é nem o mendigo, nem o tempo que mudam. É minha cara. Meu rosto.
Meus olhos o tocam e sentem uma espécie de pavor, reverberado em cada
músculo da face. Quando digo “coitado” sem palavras, mas com o pescoço maneando
a cabeça, faço um gesto de recusa. Jogo pros céus a responsabilidade social por
aquele indivíduo. O seu destino pertence à puta que o pariu. Mas, agora, por que,
ao pedir que lhe salvem, olho discretamente para cima, e não para ele?E se ele
perceber o meu olhar fazendo uma comparação inconsciente entre ele e eu? É aqui
que retomo a marcha que fazia. Pra onde, mesmo? Na direção daquele homem
deitado no chão. Mais acima, dobro a direita, esquerda, reto, direita
novamente. Vamos lá? Passo pelo pedinte. Esquivo-me do seu pedido com um gentil
“não tenho”. Algo me impede de ir lá e sacudi-lo. Aquele ser é um inútil que
deve ter uma função. Qual? Que vá procurar! Não é sequer um mendigo, digamos,
profissional; se o fosse, teria a perna gangrenada e, aqui, minha piedade
encontraria o drama que precisa. Não se pode fazer muita coisa com uma perna
podre, não é? Cortá-la seria prudente, mas não sou um sujeito gabaritado para
fazê-lo. Portanto, pra quê sentir tanta pena? Pra quê? Por quê? Se não tivesse
tanta piedade, o mandaria trabalhar. Vai trabalhar vagabundo! Quem sabe, dar-lhe-ia um trabalho, ou uma
roupa para ir procurar trabalho. Se não tivesse tanta piedade, talvez o tocasse,
ignorando esse cheiro de mijo insuportável. Todavia, a pena que tenho dele é
baseada na pena que ele carrega. Esta relação abstrato-concreta não pode se
quebrar, caso contrário, desmancharia a coerência da contradição. Se tivesse piedade de mim, não teria piedade
alguma dele. Se não tivesse piedade de nada, mudaria o mundo. E mudar o mundo é uma coisa extremamente difícil, estou certo? Sejamos realistas.
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